Opinião
A Ciência é Clara. Porque apoiamos os movimentos de desobediência civil pelo clima
«Num sistema democrático funcional, este problema estaria na frente da discussão pública. Em vez disso, continuamos a ter “fado, futebol e fátima” (ou coroações e tricas políticas)».

Estamos em Maio de 2023, e o planeta está a arder.
Os media, timidamente, vão dando uma visão pálida do que está a acontecer, muitas vezes sem sequer uma referência à causa e magnitude do problema.
As ondas de calor e recordes absolutos de temperaturas repetem-se pelo planeta fora: América do Norte, Ártico, Sibéria, Sudeste Asiático, Norte de África e Península Ibérica. As temperaturas de superfície do oceano também batem recordes, ainda antes do início do “El Nino”, que agravará a situação nos próximos meses. As calotes polares estão em vias de desaparecer, como desapareceram centenas de glaciares. É o “aquecimento global” — entre aspas, porque é muito mais do que apenas um aquecimento.
As nossas emissões de gases de efeito de estufa (principalmente CO2) têm vindo a acumular-se na atmosfera — já aumentámos em 50% a concentração de CO2 na atmosfera.
O CO2 mantém-se na atmosfera durante milhares de anos, e não temos mecanismos ou tecnologias para o remover em larga escala (exceptuando as árvores, mas essas vamos eliminando). Após algumas décadas, este produz uma alteração nos fluxos de calor do planeta que se traduz inevitavelmente (é física da mais básica) em aumento de temperatura.
Estes processos são bem conhecidos, e há muitas décadas têm vindo a ser medidos e modelados. Os modelos, embora envolvendo incertezas, vão sendo melhorados e confirmados ano após ano pelos dados objectivos.
Mas para além do facto inevitável do aumento de temperatura, que implicações isso tem no planeta? O clima é um sistema complexo, e sabemos bem que estes sistemas têm regiões de estabilidade e pontos críticos; quando nos afastamos das regiões de estabilidade, é difícil prever o seu comportamento. Mas podemos ainda assim fazer previsões, tal como não sabemos o resultado de uma eleição ou da lotaria mas sabemos analisar probabilidades.
Os climatólogos sabem de muitos destes pontos críticos, e fizeram previsões cautelosas sobre o que pode acontecer. Nos últimos anos, observam horrorizados que esses efeitos críticos poderão estar mais próximos de ocorrer do que previam.
O que observamos hoje é o resultado das emissões dos nossos avós — resultado das emissões até ao final do século XX. Mas isso não significa que temos mais duas gerações até sentirmos os efeitos totais dos nossos erros. Conforme nos afastamos do equílibrio, os impactos precipitam-se, e nos próximos dez anos iremos sentir o efeito adicional de todas as emissões dos últimos 30 anos — uma quantidade igual à acumulada durante todo o século anterior. Estes efeitos irão perdurar durante centenas de anos.
Temos um problema com o clima. Mas obviamente não acaba aí.
A nossa sociedade moderna é única na forma como se globalizou e nos tornámos todos interdependentes. Os efeitos de um aquecimento global médio de 2ºC ou 3ºC (a meta de 1.5ºC dos acordos de Paris é já impossível de cumprir) serão absolutamente devastadores, primeiro para os países mais pobres — onde coincidentemente o aquecimento poderá ser maior — que se tornarão inabitáveis. A produção agrícola será totalmente destruída*, originando centenas de milhões de mortes e refugiados climáticos. Isto inevitavelmente irá causar e/ou agravar exponencialmente crises económicas, políticas, sociais e conflitos em larga escala.
*Já este ano podemos esperar gigantescas quebras de produção em Espanha e no sudeste Asiático.
Naturalmente, em paralelo com toda esta alteração virá uma destruição de ecossistemas e a extinção de milhões de espécies. Muitas outras irão adaptar-se, nomeadamente com deslocações de regiões tropicais para regiões anteriormente temperadas, com o potencial de disseminação de doenças.
Tudo isto é sabido há muitos anos pela comunidade científica, que tem o treino e acesso à informação para entender os mecanismos envolvidos. Mas o mesmo não se pode dizer de jornalistas, políticos, gestores, ou da comunidade em geral. É tentador simplificar ou ignorar os factos, olhar para os cenários mais optimistas, mas a comunidade académica tem a responsabilidade de rectificar e comunicar a realidade.
Os factos não são difíceis de perceber. Muitos não cientistas compreendem exactamente a dimensão do problema. Mas todos temos de tirar a cabeça da areia e ser honestos e frontais na comunicação da magnitude e importância da emergência climática.
Num sistema democrático funcional, este problema estaria na frente da discussão pública. Em vez disso, continuamos a ter “fado, futebol e fátima” (ou coroações e tricas políticas). Enquanto isso, a grande indústria extractivista continua a acumular poder à custa dos recursos de todos, destruindo de caminho o futuro de múltiplas gerações, e usando esse poder para controlar os nossos destinos.
Soluções? Cada vez temos menos tempo e as opções (que não foram preparadas ao longo de décadas) são cada vez mais limitadas e drásticas. Mas é imperativo que façamos tudo o que for possível para limitar os danos. Claro, o mais urgente é inquestionavelmente parar de emitir CO2. Os estudos estão feitos, sabemos o que precisamos fazer, mas falta a ação política.
É por isso que muitos milhares de activistas e cientistas por todo o mundo são forçados a colocar as suas vidas e liberdade em risco, em ações de desobediência civil. Não temos outros mecanismos e não temos tempo.
É por isso que apoiamos os movimentos de desobediência civil como a Greve Climática Estudantil, o Scientist Rebellion ou o movimento Parar O Gás, e apelo à comunidade científica e académica a juntar-se a estes movimentos.
Dia 13 de Maio estaremos em Sines com outras centenas de cidadãos preocupados, exercendo o nosso papel de cidadania activa para exigir uma transição energética e o fim da utilização do gás “natural”.
Artigo de Opinião da autoria de Miguel Belbut Gaspar e André Gaspar
Miguel Belbut Gaspar
Investigador, Doutorando em Matemática e Aplicações, membro do Scientist Rebellion Portugal.
André Gaspar
Estudante, membro do Fridays For Future Leiria.
